“Eu tenho duas datas de nascimento! (risos) Dois anos, duas datas e dois meses.”
“Aconteceu na época da guerra. O governo estava recolhendo todos os rapazes que nasceram a partir de 1977. Aí meus pais, que não queriam que eu fosse do exército, trocaram minha idade. Colocaram 1973, mas sou de 1977.”
“Se eu for calcular até me atrapalho porque eu calculo sempre com 1973, então não sei que idade eu tenho agora de verdade. Vamos calcular?”
Pilos Tsasa Malavu tem 43 anos e desembarcou no Brasil em 2015 fugindo da guerra em seu país natal, Angola. Hoje, ele cursa graduação em Engenharia Civil na Unicamp. Ele já havia escapado antes, com apenas 06 anos de idade, sempre devido à guerra. “Eu vi Angola pouco”, lembra ele.
Mesmo depois que os conflitos entre os três grupos armados que disputavam a liderança de Angola – Movimento Popular de Libertação da Angola (MPLA), União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita) e Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) – foi terminado e a assinatura do acordo de paz foi feita, Pilos viu a necessidade de sair do país mais uma vez. “O acordo de paz da minha província não foi total, ele foi comprado. Até hoje discordam disso, por isso tem a guerra. A gente entrou para um desses grupos que assinaram o acordo, trabalhamos como membros deles, mas não deu certo. Então alguns outros voltaram para a mata e a gente preferiu vir para o Brasil”, conta.
Dentre seus familiares que chegaram ao Brasil, Pilos foi o único que conseguiu o estatuto de refugiado. Procurando vagas no jornal A Hora, ele conseguiu emprego na construção civil, área na qual já trabalhava na Angola. Tentou também validar seu diploma de Ensino Médio técnico, mas o Ministério da Educação (MEC) só faz a equivalência de Ensino Médio tradicional. Fez, então, cursos profissionalizantes no Setor Técnico de Edificações, de encarregado de obras, de corretor de imóveis e de eletricista.
Três anos depois, ficou desempregado até que seu irmão lhe conseguiu emprego em Mogi das Cruzes (SP) como funcionário da empresa RP Engenharia prestando serviço para a Companhia de Processamento de Dados do Estado de São Paulo (Prodesp). Mas depois de seis meses, o contrato da licitação acabou e Pilos estava novamente sem emprego.
“Eu sempre sonhei em fazer uma faculdade”, lembra. Enquanto ele ainda estava sem ocupação, a oportunidade surgiu com uma ligação da Cáritas Arquidiocesana de São Paulo: “Me perguntaram se eu queria continuar meu estudo porque tinha vaga para refugiados em 12 universidades brasileiras”, conta. “Eu falei que tinha interesse, pesquisei sobre as universidades na internet e escolhi a Unicamp”, conta.
Desde 2003, várias universidades brasileiras oferecem vagas exclusivas para refugiados graças à implementação da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM) na Agência da ONU para Refugiados (Acnur). Trata-se de um acordo assinado entre as instituições de ensino superior e o Acnur para incentivar pesquisas sobre o tema e criar oportunidades para refugiados.
As universidades signatárias implementam diversas iniciativas de inclusão de refugiados em cursos de graduação e pós-graduação, projetos de extensão, eventos, oportunidades de bolsa e apoio psicossocial. Na Unicamp, por exemplo, que é signatária da Cátedra desde 2019, refugiados não precisam prestar vestibular. Por meio do programa de ingresso facilitado da CSVM-Unicamp, refugiados detentores de certidão emitida pelo Comitê Nacional para os Refugiados do Ministério da Justiça (Conare) – e que eram universitários em seus países de origem – devem apresentar documentação comprobatória e uma carta de motivação à Diretoria Acadêmica (DAC/UNICAMP). Em seguida, passam por um processo de avaliação interno na faculdade pretendida. Caso aprovado, o aluno/a pode se matricular e iniciar seus estudos na universidade.
“A Cátedra é um instrumento fundamental para termos uma diversidade cultural no campus, de diplomacia, de fomentar a paz por meio do diálogo, construir laços com outras comunidades”, afirma o reitor da Unicamp Prof. Dr. Marcelo Knobel. “Temos o nosso papel social como universidade de acolher pessoas que já tinham iniciado o ensino superior em outro país e tiveram, por um motivo ou outro, sair do seu país”.
A Unicamp tem atualmente 15 alunos refugiados matriculados, 14 cursando graduação e 1 no mestrado. Eles vêm da Síria (4), República Democrática do Congo (3), Palestina (2), Gana (2), Serra Leoa (1), Irã (1), Egito (1), Cuba (1) e Angola (1).
De acordo com o último relatório da Cátedra Sérgio Vieira de Mello, o número de refugiados matriculados em universidades do Brasil inteiro quase triplicou de 2019 para 2020: foi um salto de 117 para 339 alunos ingressantes entre os dois anos.
Quando eu saí da Síria eu tinha um objetivo em mente: entrar na faculdade”, comenta Sameh Brglah, aluno refugiado sírio de Odontologia na Unicamp. “Eu entrei numa faculdade lá, mas era difícil por conta da guerra. Eu moro numa região metropolitana e eu tinha que me deslocar para a capital [onde estudava]. Não é tão longe, mas às vezes o caminho fechava… tinha as complicações dos conflitos”.
Cumprir esse objetivo foi o que Sameh tentou fazer nos países que residiu depois que deixou a Síria, em 2012 (um ano depois da guerra no país ter começado). Primeiro ele foi para o Líbano, mas a situação econômica do país era difícil e não havia oportunidades para estrangeiros.
Seguiu para a Jordânia, mas não era permitido que estrangeiros entrassem em faculdades públicas do país e as instituições particulares eram muito caras. Na Malásia, haviam vagas em universidades para sírios, mas o pedido de ingresso de Sameh foi recusado. Na Turquia, ele conta que foi difícil se adaptar à cultura local.
“Nesse tempo (2013) eu estava querendo sair da região do Oriente Médio e foi quando comecei a ouvir que as pessoas estavam indo para o Brasil”, lembra. Em 24 de setembro de 2013 o Conare anunciou a concessão de vistos humanitários especiais para pessoas afetadas pelos conflitos armados na Síria e buscando refúgio no Brasil.
Sameh chegou ao Brasil em março de 2015, e, assim como Pilos, começou a trabalhar na região onde desembarcou. Tinha um emprego numa loja de móveis de donos libaneses, na Zona Leste de São Paulo, onde também conseguiu moradia e ajuda dos membros da família, que falavam árabe.
Depois de cinco meses trabalhando, veio o interesse por tentar de novo uma faculdade, mas as tentativas foram frustradas porque estava sem o Registro Nacional de Estrangeiros (RNE) em mãos, que na época as universidades exigiam na hora de pedir uma vaga (com a Lei de Migração de 2017, o CRNM substituiu o RNE). No entanto, uma amiga sugeriu que, mesmo assim, tentasse a Unicamp.
“Eu questionei se daria certo porque iam pedir o documento que eu não tinha ainda, mas eu fui à Unicamp e eles foram bastante receptivos. Deixei meus documentos, tiraram minha foto, fizeram meu cadastro e pediram para indicar os cursos que queria. Foi bastante fácil”, comenta ele. Quando seu pedido foi aprovado, em 2016, Sameh foi o primeiro caso de aluno refugiado entrando na graduação em Odontologia da Unicamp.
“Para mim, a Unicamp significou uma oportunidade de um futuro melhor”, diz ele. “Eu sei como é trabalhar de forma informal e, não só no Brasil, é complicado. Você recebe salário mínimo, às vezes menos, porque eu não tinha carteira assinada e não falava a língua. Essa oportunidade da Unicamp me deu uma chance de eu desenvolver um futuro melhor daqui para frente”.
Bolsas e auxílio
Alunos refugiados na Unicamp também têm direito a uma série de bolsas de permanência estudantil disponíveis para alunos em situação de vulnerabilidade.”Na UNICAMP contamos com bolsas regulares de auxílio social, do Serviço de Apoio ao Estudante, que são fundamentais para a permanência de nossos alunos refugiados”, afirma a presidenta da Cátedra Sérgio Vieira de Mello da Unicamp, professora Ana Carolina de Moura Delfim Maciel.”Nos primeiros meses da pandemia, contamos com um auxílio adicional via Ministério Público do Trabalho que contribuiu muito para a subsistência de nossos alunos”, diz.
Os alunos de fora da Região Metropolitana de Campinas (RCM) têm acesso a residência gratuita por meio do Programa de Moradia Estudantil (PME) da universidade. Qualquer aluno de graduação também pode requisitar uma bolsa de auxílio-social (BAS), no valor de R$ 678,81, mediante participação em projetos de professores da universidade.
“Como eu não tenho renda e apoio familiar, eu solicitei essa bolsa e fui aprovado de primeira”, conta Sameh, que hoje trabalha como bolsista no projeto de cariologia de uma professora da Faculdade de Odontologia. “No laboratório a gente faz pesquisa sobre fluoreto, flúor. Os alunos pegam várias pastas de dente de vários lotes e avaliam a quantidade de flúor ativo, medindo qualidade e tudo mais. É bom porque me deu oportunidade de ver como é a área acadêmica, como os alunos de pós-graduação trabalham. “.
Com a pandemia, no entanto, as coisas mudaram. As aulas seguem à distância há onze meses e não há previsão de retorno, devido à suspensão das atividades presenciais. O laboratório onde Sameh trabalha também segue parado em reforma para as devidas medidas de biossegurança para Covid-19.
Pilos, por outro lado, mal chegou a conhecer o campus pessoalmente. “Imagina que eu entrei na Unicamp dia 02 de março e saí no dia 12 (risos)”, comenta. Mesmo com as aulas à distância, que ele assiste de São Paulo, Pilos se diz esperançoso. “Primeiro, meu sonho é ser engenheiro formado na Unicamp, eu ficaria feliz por toda a vida. Depois, eu quero ajudar meu povo porque tem lugar na Angola que não tem água potável, em que se bebe água do rio…. queria construir escola, fazer um curso profissional, talvez com a possibilidade de ser de graça para a pessoa aprender. É dessa forma que eu quero ajudar”.
Em 2021, os alunos se preparam para seguir com as aulas remotas, reorganizando seus materiais de trabalho e rotinas. Além disso, a Cátedra mantém as atividades à distância para apoio aos estudantes refugiados e está organizando um livro de receitas “Sabores sem Fronteiras” com a participação de refugiados e imigrantes no Brasil, cuja intenção é dar mais visibilidade ao tema e possibilitar a reinserção de refugiados na sociedade brasileira.
Leia a matéria original no Jornal da Unicamp.